quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Reflexões da médica Isabel do Carmo


Este texto é de Isabel do Carmo (médica). E tem toda a 
razão.

O primeiro-ministro anunciou que íamos empobrecer, com aquele
desígnio de falar "verdade", que consiste na banalização do mal,
para que nos resignemos mais suavemente. Ao lado, uma espécie
de contabilista a nível nacional diz-nos, como é hábito nos
contabilistas, que as contas são difíceis de perceber, mas que os
números são crus. Os agiotas batem à porta e eles afinal até são
amigos dos agiotas. Que não tivéssemos caído na asneira de
empenhar os brincos, os anéis e as pulseiras para comprar a
máquina de lavar alemã. E agora as jóias não valem nada. Mas o
vendedor prometeu-nos que... Não interessa.

Vamos empobrecer. Já vivi num país assim. Um país onde os
"remediados" só compravam fruta para as crianças e os pomares
estavam rodeados de muros encimados por vidros de garrafa
partidos, onde as crianças mais pobres se espetavam, se tentassem
ir às árvores. Um país onde se ia ao talho comprar um bife que se
pedia "mais tenrinho" para os mais pequenos, onde convinha que o
peixe não cheirasse "a fénico". Não, não era a "alimentação
mediterrânica", nos meios industriais e no interior isolado, era a
sobrevivência.


Na terra onde nasci, os operários corticeiros, quando adoeciam ou
deixavam de trabalhar vinham para a rua pedir esmola (como é que
vão fazer agora os desempregados de "longa" duração, ou seja, ao
fim de um ano e meio?). Nessa mesma terra deambulavam também pela rua os operários e operárias que o sempre branqueado Alfredo da Silva e seus descendentes punham na rua nos "balões" ("Olha,
hoje houve um ' balão' na Cuf, coitados!"). Nesse país, os pobres
espreitavam pelos portões da quinta dos Patiño e de outros, para
ver "como é que elas iam vestidas".

Nesse país morriam muitos recém-nascidos e muitas mães durante
o parto e após o parto. Mas havia a "obra das Mães" e fazia-se
anualmente "o berço" nos liceus femininos onde se colocavam
camisinhas, casaquinhos e demais enxoval, com laçarotes, tules e
rendas e o mais premiado e os outros eram entregues a famílias
pobres bem- comportadas (o que incluía, é óbvio, casamento pela
Igreja).

Na terra onde nasci e vivi, o hospital estava entregue à Misericórdia.
Nesse, como em todos os das Misericórdias, o provedor decidia em
absoluto os desígnios do hospital. Era um senhor rural e arcaico,
vestido de samarra, evidentemente não médico, que escolhia no
catálogo os aparelhos de fisioterapia, contratava as religiosas e os
médicos, atendia os pedidos dos administrativos ("Ó senhor
provedor, preciso de comprar sapatos para o meu filho"). As
pessoas iam à "Caixa", que dependia do regime de trabalho (ainda
hoje quase 40 anos depois muitos pensam que é assim), iam aos
hospitais e pagavam de acordo com o escalão. E tudo dependia da
Assistência. O nome diz tudo. Andavam desdentadas, os abcessos
dentários transformavam-se em grandes massas destinadas a
operação e a serem focos de septicemia, as listas de cirurgia eram
arbitrárias. As enfermarias dos hospitais estavam cheias de doentes
com cirroses provocadas por muito vinho e pouca proteína. E
generalizadamente o vinho era barato e uma "boa zurrapa".
E todos por todo o lado pediam "um jeitinho", "um empenhozinho",
"um padrinho", "depois dou-lhe qualquer coisinha", "olhe que no
Natal não me esqueço de si" e procuravam "conhecer lá alguém".
Na província, alguns, poucos, tinham acesso às primeiras letras (e
últimas) através de regentes escolares, que elas próprias só tinham
a quarta classe. Também na província não havia livrarias
(abençoadas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian), nem teatro,
nem cinema.


Aos meninos e meninas dos poucos liceus (aquilo é que eram
elites!) era recomendado não se darem com os das escolas técnicas.
E a uma rapariga do liceu caía muito mal namorar alguém dessa
outra casta. Para tratar uma mulher havia um léxico hierárquico:
você, ó; tiazinha; senhora (Maria); dona; senhora dona e... supremo
desígnio - Madame.

Os funcionários públicos eram tratados depreciativamente por
"mangas-de-alpaca" porque usavam duas meias mangas com
elásticos no punho e no cotovelo a proteger as mangas do casaco.
Eu vivi nesse país e não gostei. E com tudo isto, só falei de pobreza,
não falei de ditadura. É que uma casa bem com a outra. A pobreza
generalizada e prolongada necessita de ditadura. Seja em África,
seja na América Latina dos anos 60 e 70 do século XX, seja na
China, seja na Birmânia, seja em Portugal


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